Coluna do Adilson Cardoso – Coisas banais
Charlene pisava forte na escada, bufava, demonstrando cansaço, era o ultimo degrau para o terceiro andar. Colocou a mão no peito e olhou para baixo, as sacolas plásticas dependuradas nas mãos pareciam ter dobrado de peso.
— Ladrão miserável! A gente paga tanto pra ter que ficar subindo a pé! Ô inferno! Coloque um elevador nessa droga! – Esbravejava se arrastando.
Embaixo da porta do trezentos e quatro, estava um envelope com carimbo da justiça, quase todo do lado de fora.
— Vixe é da justiça! O que será? – Falou curiosa.
Morava ali uma mulher sardenta que não falava com os vizinhos, quando cumprimentava alguém era sempre de cabeça baixa. Todos os dias era espancada pelo marido. Charlene agachou-se para puxar o envelope, mas recuou ao ouvir passos. Era o vendedor de Jornais, que corria, levando um porquinho de gesso embaixo do braço, logo atrás vinha um velho de pijama se arrastando sobre uma bengala.
— Pega esse menino ai, dona Charlene! Pega que é ladrão!
— Eu não seu Tobias, estou cansada, pegue o senhor!
— Sua baleia desdentada esse miserável roubou meu cofre!
— E eu com isso, não sou da policia!
— Imprestável, gorda, bruxa, mal-educada!
— E o senhor, velho veado sem vergonha!
— Vou te denunciar por calunia sua baleia!
— Denuncia velho gay! bichona, gazelona, chuparino! Vai atrás do seu cofrinho! Vai que o menino revela seus podres! Vai! – Disse em voz alta.
— Olha o nível gentalha! – gritou uma voz do andar de cima.
— Vai cuidar da sua hemorroida dona Graça! – Retrucou Charlene levantando a cabeça.
O envelope foi puxado para dentro, Charlene ficou parada em frente a porta. Uma voz masculina imediatamente passou a esbravejar, barulho de copos se quebrando, a mulher gritou por socorro, implorava repetidamente, o homem mandava calar a boca. O apartamento ao lado ligou o som, Zezé de Camargo e Luciano cantava “é o amor.” Uma das sacolas desprendeu-se das mãos de Charlene á abobora rolou escada abaixo, o vidro de azeitonas partiu-se espalhando frutos e cacos. A mulher continuava apanhando e suplicando por socorro. A musica do apartamento ao lado fazia a trilha sonora. Quando os gritos cessaram, o som foi desligado. A tarde uma nota do Sindico foi afixada no corredor,
“Atenção, Se o autor da quebra do vidro no corredor, não se identificar ou um vizinho que acaso tenha visto não denunciar, de acordo com a portaria 147/2017 a multa será coletiva, ou seja todos pagarão. Informo ainda que pela displicência de quem cometeu tal ato, ficaremos alguns dias sem a faxineira. Os cacos lhe cortaram a mão.”
Horas depois, o Sindico encontrou um bilhete em baixo da sua porta.
“Senhor sindico, não gosto de apontar as pessoas sou temente a Deus e sigo o evangelho, mas a verdade deve ser dita, para que os justos não paguem pelos pecadores. Quem quebrou o vidro no pátio foi a moradora do trezentos e quatro. Presenciei o fato, mas não aceito ser testemunha, prezo pelo bom relacionamento entre os vizinhos.”
— Já que ela gosta tanto de apanhar, não vai se importar em pagar uma multinha dessa né! – Falou Charlene sorridente, apertando o controle remoto da televisão e comendo Brigadeiro na lata.