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Boletins policiais ignoram dados em crimes envolvendo LGBTs

Boletins policiais ignoram dados em crimes envolvendo LGBTs

Quando Luadna Barbosa da Silva, 25, e as amigas buscaram ajuda policial, já temiam pela vida de Vitória, que havia desaparecido após entrar no carro de um cliente, um dia antes. Elas foram a uma delegacia fazer o Registro de Eventos de Defesa Social (REDS) – antigo Boletim de Ocorrência (BO). Mesmo que, desde 2016, o preenchimento de campos ligados a orientação sexual, identidade de gênero e nome social seja obrigatório nos registros, em nenhum momento as informações foram solicitadas às denunciantes. Mulheres trans e travestis, nenhuma delas possuía documento de identidade redesignado para o gênero atual, de forma que constaram no registro como sendo homens.

Analista de redes sociais, Giovanna pede mais conscientização
Analista de redes sociais, Giovanna pede mais conscientização

 

Saíram de lá com duplo nó na garganta, pois, além de estarem abaladas pelo desaparecimento da amiga, sentiram-se humilhadas. O calvário delas, todavia, não terminava ali: 48 horas depois, o corpo de Vitória foi encontrado e, em todos os registros, ela também passou a ser tratada como “ele”. “Foi enterrada com nome de bofe… Ficamos arrasadas, mas sem ter o que fazer”, relembra Luadna.

Histórias como essa estão longe de ser exceção, como indica o recém-divulgado relatório “Registro de Homicídios Envolvendo LGBTs no Estado de Minas Gerais”, feito pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH) em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais.

Segundo a pesquisa, que reuniu registros de casos de homicídio tentado e consumado entre 2016 e 2018, em ocorrências envolvendo trans e travestis, o nome social não foi citado na metade dos casos, a orientação sexual não foi informada em 35% das vezes, e o campo “identidade de gênero” foi ignorado em 33% das ocorrências.

Para o coordenador do NUH, professor Marco Aurélio Máximo Prado, é grave a falta de registro adequado do perfil dos envolvidos nesses casos de crimes, pois isso faz aumentar a dificuldade na obtenção de dados oficiais sobre violência contra LGBTs e impede que políticas públicas sobre o tema sejam criadas. Ele lembra que essas ocorrências são subnotificadas.

Negligência

São várias as razões que levam à negligência de tais dados. “Há uma questão de organização do trabalho: a maioria dos REDSs é feita pela PM, que, muitas vezes, não tem tempo de preencher adequadamente o formulário”, analisa Marco Aurélio.

Pesa também o fato de não haver um marco jurídico, defende o professor – que vê na recente criminalização da LGBTfobia, por decisão do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de que haja melhora nos registros e que os crimes passem a ser mais vezes tipificados nessa categoria.

Além disso, “alguns agentes dizem não fazer essas perguntas por constrangimento” e “muitas pessoas não sabem que esses campos existem e não exigem o preenchimento”, conclui. Para contornar a situação, “é preciso pensar na formação dos agentes e que órgãos pactuem com as polícias sobre a importância de se gerarem os dados apurados”, conclui.

Sistema é falho, não a polícia

Os REDSs não são preenchidos corretamente por uma série de fatores, segundo a procuradora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça dos Direitos Humanos de Minas Gerais, Cláudia Sprange. “Não é por má vontade do agente, porque não é algo pessoal ou institucional, é sobre um sistema que, como um todo, não entendeu a importância de esses campos serem preenchidos”, avalia.

“A polícia é um elemento importante, mas não é sinônimo de segurança pública – que é algo que envolve planejamento local, estadual, nacional. E esse planejamento exige que se conheçam dados”, acrescentou.

Segundo Cláudia, o estudo vai ajudar a compreender melhor esse tipo de violência e como ele é tratado e é o começo de um longo processo para um diagnóstico. “O sistema de Justiça tem dificuldade de gerar dados oficiais e não oficiais”, diz.

Expectativa média de vida das pessoas trans e travestis é de 36 anos, diz ONG

A vida de pessoas trans e travestis é “um breve sopro”, examina a representante mineira da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Anyky Lima, 64. Ela pode ser considerada uma sobrevivente, já que a expectativa de vida para essa parcela da população raramente ultrapassa os 36 anos, de acordo com a ONG. Em Minas Gerais, a média de idade de trans vítimas de homicídios e tentativas do crime registrados entre 2016 e 2018 foi 27 anos e 8 meses.

A prematura morte dessas pessoas é uma das violentas estatísticas apontadas pelo “Registro de Homicídios Envolvendo LGBTs no Estado de Minas Gerais”, elaborado pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH) em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos (CAODH).

Testemunha da morte de tantas amigas, Sônia Sissy Kelly chega aos 63 com a “sensação de ter vivido 300”. “Aos problemas de saúde, que costumam vir com a idade, soma-se o cansaço que é a luta para ter sobrevivido até aqui”, diz ela. Segundo Sônia, ela não pode baixar a guarda, pois até andar nas ruas pode ser perigoso. Ela está certa, já que 87% dos homicídios tentados ou consumados contra transexuais e travestis ocorreram em espaço público, conforme os dados do levantamento.

A solidão agrava a situação – e levou muitas conhecidas suas a desenvolver quadros depressivos. “Nosso vínculo familiar é rompido ou fragilizado desde muito cedo”, comenta Sônia, que precisou viver em situação de rua muitas vezes desde que começou a transição de gênero, aos 17 anos. “Na juventude, a gente não percebe (a solidão)”, diz ela, em referência à forma como esses corpos são objetificados e fetichizados.

Ela lembra que, sem que haja grande oferta de emprego, são muitas as mulheres trans e travestis que, para sobreviver, passam a se prostituir. Mas, na velhice, “esses corpos ficam ainda mais invisíveis, porque não despertam mais desejo”, afirma.

A representante da Antra, Anyky Lima, reforça que há outros preconceitos que afastam pessoas e tornam mais difícil a vida dessa população. Usando dados apurados pelo levantamento feito pelo NUH em parceria com o CAODH, ela indica sinais de uma problemática associação das travestis à criminalidade.

Evidência disso, as supostas autoras de crime tem maior probabilidade de serem classificadas como tal, enquanto essa informação, quando se trata de supostas vítimas, é suprimida em quase metade dos registros.

Ativistas consideram que existem avanços

“Ter acesso a identidade não é pecado nem doença, é direito”, constata a artista Pitty Puri, 29. Ao longo da vida, foram muitos os episódios em que ela se sentiu desrespeitada. Atualmente, com certo alívio, ela entrevê avanços, principalmente depois que teve nome e gênero retificados.

Há um ano, Pitty sofreu um atentado e buscou a polícia, que a acolheu e a fez se sentir respeitada. “Aos poucos, as coisas estão mudando”, reflete a artista.

A analista de redes sociais Giovanna Heliodoro, 22, defende campanhas para conscientizar pessoas trans e travestis sobre seus direitos.

“Antes de passar pela transição, eu havia sido assaltada e, por isso, descobri que havia campos sobre identidade de gênero e orientação sexual nos registros de ocorrência”, expõe Giovanna.

Por ALEX BESSAS do Jornal O Tempo