Últimas Notícias
Adilson Cardoso
Adilson Cardoso

Coluna – Rotina da Lei

Eram nove horas e quarenta e cinco minutos da manhã, sábado. O delegado Assis Devisoga fumava um cigarro, e retorcia seu bigode grosso pintado de fios grisalhos. Andando de um lado para outro na sala e esbravejando contra os diabos que lhe fizera perder algumas notas de cem reais no jogo de sinuca. De repente surge como um raio uma figura espalhafatosa, com um turbante rosa na cabeça, bata de mangas e calças frouxas de crepe chiffon. Brincos argolas de cigano realçando nas orelhas, nos pés um Scarpin salto agulha fazendo percussão no taco desgastado. Um policial vinha ofegante logo atrás, o Delegado que estava doido para descontar em alguém o seu prejuízo no jogo, entortou o cigarro para um canto da boca feito o cachimbo do Marinheiro Popeye, e não quis saber de bom dia, enfiou-lhe a mão na orelha que o turbante rodopiou no ar. – Respeita minha delegacia, seu fi de rapariga! Tá pensando que aqui é a casa-da-mãe-joana para ir fundando com essa baitolagem descarada! Por que é que está fugindo do policial?  Ao dobrar a camisa para dar outro sopapo, o policial interveio se atirando na frente. – Seu delegado me perdoe, mas está havendo um engano, este rapaz é o denunciante, os dois que vem logo atrás que são os supostos autores da desonra! E veio entrando o primeiro sujeito, magro, sarará, quase albino, portando chinelos de dedos, sem camisa e sangrando pelas narinas, usava uma calça branca com o zíper relaxado deixando a mostra uma cueca encardida. Ao seu lado dois policiais robustos o escoltava a cotoveladas. O segundo tinha chapéu grande, estilo vaqueiro, botas e camisa xadrez, também tinha a companhia de dois policiais lhe cotovelando as costelas. O delegado encarou furiosamente aquelas criaturas, franziu um olho, cuspiu o cigarro quase no colo do escrivão para ter mais liberdade de gesticular com a boca e gritou: – Agora eu mato essas desgraças! Seus fi de rapariga véia! – o que é que vocês estão pensando que minha delegacia virou? Eu não posso ter mais sossego não, é? Então vou lhes ensinar! Com a mão espalmada mirando no meio do ouvido do sarará, girou feito cata-vento e bateu poft!  A tapa foi tão forte que um dos soldados que o segurava caiu sobre um cesto de lixo. Já que o Sarará se esquivara com esperteza. Com isto a fúria dobrou de tamanho. E o delegado escumava pela boca feito fera do mato. E o soldado esbofeteado também, mas levantou-se, respeitando a hierarquia, ainda que por dentro sentisse vontade de vingar-se com pelo menos um chute naquele saco murcho. Mas contentou-se em transferir a raiva, segurou o detido pelo pescoço e ficou de lado para que num eventual erro de pontaria do chefe, não sofresse novos danos. Quando o braço já estava no calibre do pau da venta, eis que uma voz ecoa lá no topo da escada. – Alto lá! Sou o Advogado Menegildo Capistrano do Ministério do Trabalho! E a partir deste momento nomeio como meu cliente este cidadão que padece sob a tortura de autoridades que deveriam estar cumprindo a justiça ao invés do espancamento gratuito. Pasmos, delegado e policiais e até o vaqueiro, se olharam surpresos, aguardando a aproximação do repentino defensor. Fizeram o detido sarará sentar-se no banco de espera, longe do outro que também era acusado. E que não se agüentando pela injustiça de estarem no mesmo crime e o advogado só para um, levantou-se para questionar. – Seu advogado que mal lhe pergunte, por que nós dois cometemos o mesmo crime e apenas ele vai ser defendido pelo senhor? O advogado pensou, balançou a cabeça com certa despreocupação e respondeu. – Meu amigo deixe de aperreio, vá comer sua quentinha, receber seu salário-presidio e fumar seu baseado tranqüilo! Esse coitado aqui não vai ficar preso, mas em compensação vai trabalhar trinta dias para ganhar setecentos e poucos reais, acordando de madrugada para pegar ônibus lotado e almoçar arroz e feijão, um ovo só de vez em quando! Tudo isto ainda taxado com altos impostos, quer trocar com ele? – Deus me livre! Disse o vaqueiro. – Pode algemar seu delegado! Leva que eu sou o culpado!

Por Adilson Cardoso

Adilson Cardoso
Adilson Cardoso