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Adilson Cardoso
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Coluna – Estas e outras coisas

Coluna – Estas e outras coisas

Gostaria que a vida fosse apenas o lado lúdico, o cerne gostoso da fantasia sem dores crônicas. Queria ter poder para ir ao reino das pequenas coisas como dissera Manoel de Barros, passear nas asas de uma borboleta e mergulhar na gota de orvalho dependurada numa flor de maracujá. Queria enxergar o mundo com a delicia de uma criança que da vida ao seu brinquedo e consegue ouvir sua voz. Não queria ter crescido tão rápido, ficado tão serio e ter perdido a graça de certas coisas, por exemplo, quando viesse à chuva gostaria de correr pelado em toda a extensão da rua, bater os pés na poça d’água e deitar no chão de olhos fechados. Queria pegar os super-amigos de plásticos e brincar na lama construindo cavernas, ainda que ao avistar meu pai dobrando a esquina com seu guarda-chuva preto tivesse que correr e me esconder, para não apanhar de cinto. Tenho saudades de quando queria ser o homem-Aranha, tinha tanta convicção da possibilidade que as vezes saia procurando um aracnídeo radioativo para picar meu braço. Lembro-me do Carlos um coleguinha do Pré, arrogante e falador de palavrões, mesmo assim a Professora o paparicava e deixava que ele se sentasse na sua mesa, os pais dele sempre traziam embrulhos para ela e ela dizia que não precisava, mas recebia e colocava na sua bolsa marron com grandes flores pintadas. Carlos voltou a ser meu colega muito tempo depois, era o primeiro ano do segundo grau eu o reconheci imediatamente seus cabelinhos penteados de outrora pelos pais, estavam longos e rebeldes seus braços tinham tatuagens e ele cheirava a cigarro, fizera de conta que não me conhecia. Se enturmava com outros colegas que usavam roupas pretas de bandas de rock e não ficavam nas salas, um dia a policia bateu na porta no meio da aula de Português, eram dois homens acompanhados da diretora, chamaram a Professora e conversaram baixinho com cuidado para que não ouvíssemos, mas visivelmente abalada, na sua volta Dona Elinha não conseguiu mais lecionar, debruçara sobre a mesa ficando imóvel por alguns minutos, até se levantar e olhar-nos com um vermelho medonho sobre aquele verde bonito. Carlos se envolvera em um assalto e havia morrido com um tiro na cabeça, seus pais achavam que ele estava na aula. Ficamos muito chocados, porém gostamos de sermos liberados para casa, as aulas haviam sido suspensas e mesmo quem não conhecia nosso colega fora beneficiado, coisa que eu não achava correto. Até comentei com seu Ismael, o porteiro amigo que fora vilipendiado por Carlos, em um dia, quando não permitira sua entrada depois do sinal, que se alguém de outra sala morresse eu também reivindicaria dispensa. Durante o velório uma imensidão de gente se misturava falando do colega, choravam como se fosse alguém que acabasse de receber o premio internacional da paz, não tive coragem de olhar para o rosto com medo que ele viesse à noite cobrar o que já disse a ele em pensamentos. Até um cachorrinho apareceu no meio da multidão pulando feliz nos seus conhecidos, o que me levou a pensar que os cachorros deviam ser muito felizes já que pouco se importam com a situação dos outros, tendo comida para eles e um lugar quentinho para dormir é o bastante. No meio das reflexões me veio à memória uma cadela que tinha na casa de um vizinho, se chama Bila, pariu certa vez e como castigo ganhou um presídio. Da rua ela só sentia o cheiro pelas frestas do portão e também ouvia o barulho de um carro que vendia bananas cantando uma musica chata que ela odiava. Latia tanto que incomodavam todos a sua volta. A primeira chance que Bila encontrou ao descuidarem do portão foi correr para longe dali, por dias e dias seus donos colaram cartazes nos postes com sua foto pedindo ajuda para encontrá-la, só não ofereciam recompensa. Meses depois uma Bila magricela e cheia de pulgas aparecera latindo no portão com o ventre cheio de filhotes, o vizinho a colocou em uma caixa de papelão e levou-a para onde ninguém sabe, Bila nunca mais apareceu. Gostaria muito que ao ser ofendido a vingança fosse apenas um choro, que meu peito não guardasse mágoas e que as pessoas próximas a mim, pudessem entender as coisas que sinto. Por falar nisso tudo, tem muita coisa que eu não disse ainda, mas talvez não coubesse aqui.

Por Adilson Cardoso

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